Sentimentos demais 
Ou como evitar que o amor morra afogado em nossas         emoções 
Ivan Martins - 10/10/2012         09h01 
                    Vamos ser francos: nosso problema não é sexo. Isso se arranja com         facilidade. O que nos exaspera são as relações que estabelecemos a partir         do sexo, ou apesar dele. O que nos sufoca é aquilo que se faz antes e         depois de transar. A pessoa que fica ali  ou que gostaríamos que ficasse,         mas não fica  constitui nosso maior problema, e talvez nossa única         solução.  
                    Estar com alguém mais do que ocasionalmente, porém, constitui um         desafio insolúvel  tanto quanto um prazer imensurável.          
                    As pessoas têm manias, têm temperamento, têm hábitos que nos         incomodam. Elas reclamam de tudo, pateticamente. Elas se enfurecem com         tudo, histericamente. Elas têm problemas, opiniões, desejos, amigos. Elas         são lindas e nos causam ciúme. Elas são controladoras e nos irritam. Elas         podem ser frívolas e indiferentes. Freqüentemente mergulham nelas mesmas e         nos deixam entregues às apreensões e receios. Às vezes queremos que sumam,         morram, pelo-amor-de-deus desapareçam. No outro dia acordamos sem elas e o         coração perde duas batidas, de medo.  
                    Na verdade, sofremos de sentimentos demais. Eles transbordam,         excedem, afogam. Seria infinitamente mais simples se fôssemos como os         outros. Veja o casal do elevador, o professor de natação e a namorada         dele. Obviamente felizes, simples, calmos. Trocam duas palavras e um olhar         entre o quinto e o térreo. Gente bem resolvida. É impossível que ela chore         de noite por temer que ele não a ame. Evidentemente ele não se isola         diante da televisão e tenta aplacar os nervos vendo um filme inútil. Eles         certamente nunca se metem em discussões dolorosas. Sabem o que fazer deles         mesmos e do seu amor. Eles têm as respostas. As criaturas esquisitas somos         eu, você e os nossos parceiros. Eles, os outros, são simples e felizes.         Gente bem resolvida.  
                    Os sentimentos são o nosso principal problema, claramente. Estamos         encharcados deles. Sentimentos de toda espécie, misturados. Você olha para         aquela pessoa que abriu a porta e eles afloram, conturbados. Quanta         aflição não esconde um abraço? A gente então conversa, e a confusão         reflui. A gente espanta o assombro com a nossa voz e o nosso riso. A         trivialidade nos resgata como um bote salva vidas. Nos olhos da mulher que         a gente ama há uma praia tranqüila onde a gente ancora  até que o mar no         interior dela se agite e a paz efêmera se perca. De novo.          
Gostaríamos que não fosse assim, claro. Preferiríamos ser         gente simples, composta, direta. Em vez de todas as memórias dolorosas que         trazemos conosco, paz. Em vez da confusão de planos e aspirações, clareza.         Nada de turbulência submersa, nenhuma recordação inconfessável, apenas         superfície indevassável e tranqüila, como um lago.          
                    Imagine deslizar a mão pelo corpo macio dela sem que a cabeça         esteja tomada por idéias conflitantes. Que genial fazer amor sem que nele         se projete, num rosnado, o velho arsenal de ressentimentos que parece ter         nascido conosco. O sexo então seria puro, biológico, em vez de uma batalha         épica entre o bem e o mal, entre o público e o privado, entre o certo e o         errado que nos habitam. E, depois do prazer, enrolar-se cheio de ternura e         de angústia agridoce naquela criatura que ofega. Sentir-se pai, filho,         irmão, apaixonado, opressor-filho-da-puta, canalha, marido. O que mais?          
                    Os sentimentos não nos largam, indecifráveis. O carro trafega a 40         km por hora, numa alameda ensolarada, e a lembrança de um certo olhar         pungente quase nos leva às lágrimas. De onde vem essa emoção? Certamente         da música, um samba travesso de Chico Buarque que nos conecta a tudo e a         todos, num momentâneo abraço cósmico pós-eleitoral. Somos todos irmãos,         ela me ama, a morte mora numa toca no fim da eternidade, tudo é lindo.          
                    Sejamos francos: nosso problema não é sexo, é amor. Encontrá-lo,         conquistá-lo, torná-lo parte da nossa vida e, ao final, talvez,         detestá-lo. Nosso problema é preservar esse amor em meio à tempestade de         trovões dos nossos sentimentos. Cuidar para que o fascínio físico dos         primeiros dias não se perca, evitar que a confiança que vem depois não nos         cegue de tédio. Nossa tarefa, gigantesca, é fazer com prazer  e com o         mínimo de sanidade  as coisas que se fazem antes e depois de trepar. A         pessoa que fica ao nosso lado nesse intervalo é nosso maior problema, e         talvez a única solução. 
 |       |
.


Nenhum comentário:
Postar um comentário